segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sobre os termos Alcorão/Corão e Mafoma/Maomé


Do Blog "Alma Lusíada":

Em recente convívio com amigos e colegas de profissão, voltei a comprovar a geral confusão que persiste entre os Portugueses, mesmo entre pessoas cultas, informadas e actualizadas, como era o caso, sobre o vocábulo que, no nosso léxico, usamos para designar o livro sagrado dos Muçulmanos : o Alcorão, que muitos teimam em desprezar, preferindo o termo de origem francesa Corão. Alguns até julgam que com isso evitam o imaginado pleonasmo contido no vernáculo Alcorão, no que caem em lamentável equívoco.


Sendo este tão generalizado, vou aproveitar o ensejo para expender algumas explicações, valendo-me do saber daquele meu saudoso Professor do Ensino Secundário da Disciplina de Português, o Dr. José Pedro Machado (08-11-1914 -26-07-2005), ilustre Académico e cidadão probo, qualidades hoje difíceis de descobrir, ainda mais irmanadas na mesma pessoa, mas que nele eram absolutamente naturais, notórias e geralmente reconhecidas.

Aqui mesmo, neste fórum, várias vezes já a ele me tenho referido, sempre de forma elogiosa, como cumpre, a quem muito se considera beneficiado do seu amável convívio e da sua esclarecida erudição. Posso dizer que José Pedro Machado terá sido a pessoa que, neste capítulo da pura erudição, mais me impressionou, tanto mais que, a essa condição, aliava a de uma simplicidade e lhaneza de trato sumamente invulgares nos tempos que correm.

Nunca eu certamente darei por supérfluos ou descabidos os encómios ou as meras referências que à sua figura possa tecer, sempre que a ocasião o propicie, como esta do momento presente, a propósito do esclarecimento do termo mais adequado para designar na nossa língua o livro sagrado dos Muçulmanos.

Como este eminente arabista, desafortunadamente, apesar da sua avançada idade, desaparecido do nosso convívio, faz agora quatro anos, frequentemente esclareceu, o livro sagrado dos Muçulmanos designa-se, em bom português, por Alcorão (do ár. Al-quran, a leitura, por excelência a do livro sagrado), tal como sempre escreveram os nossos escritores, desde o século XIII e XIV, incluindo os clássicos, como Camões (Os Lusíadas, III, 50:8 e VII, 13:4) e os românticos, como Herculano, e quase todos os Historiadores desde então até aos escritores contemporâneos mais escrupulosos em matéria linguística.

Só por hábito recente, por imitação dos franceses, que usam o termo «Le Coran» e dos ingleses, com o seu «The Koran», se começou, entre nós, a preferir o termo Corão, sobretudo por influência francesa, muito intensificada a partir do século XVIII, embora em ambas estas línguas persista nos dicionários o termo « Alcoran ».

Como JPM explicou, p. ex., em «Palavras a propósito de Palavras – Notas Lexicais, da Editorial Notícias, 1992 e no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, em 5 volumes, da Editora Livros Horizonte, 5ª edição, 1989 – o substantivo árabe, em regra, ao entrar na nossa língua, trouxe consigo associado o artigo definido árabe – al – e por isso temos em Português « o Alcorão », tal como «a alfaia», e não a faia, «o alguidar» e não o guidar, « o alfinete » e não o finete, «o alfaiate » e não o faiate, « o alferes » e não o feres, «o alcaide» e não o caide, «a almotolia» e não a motolia e assim por diante.

Muita gente, por gosto antigo de francesias, acabou por aportuguesar o « Coran » francês, para Corão, não cometendo com isso, certamente, nenhum crime de lesa-majestade, mas sem que haja necessidade de o fazer, nem, muito menos, é válida a justificação apontada, alegadamente, para evitar o suposto pleonasmo ocorrido com a repetição do artigo dentro do termo Alcorão.

Trata-se, como mencionado, de um processo típico de incorporação de termos de língua árabe no Português, em que aquela se fez aglutinando, na formação do nosso vocábulo, o artigo definido árabe «al» associado ao termo original.

De resto, basta consultar qualquer obra de Filologia Portuguesa, de JPM ou de outro reputado autor, para se comprovar a doutrina.

Como se descobre, paira por aí muita confusão sobre estes assuntos do Árabe e do Português, o que não nos deve merecer grande admiração, visto que daquele pouca gente sabe em Portugal e, do nosso próprio idioma, cada vez se sabe menos, situação que, naturalmente, potencia o aludido equívoco bastante difundido entre nós, pese todo o labor despendido a este respeito por José Pedro Machado e por tantos outros dos nossos maiores especialistas do Idioma.

A talhe de foice, acrescentarei ainda, na continuação deste tributo à memória de tão emérito Mestre, que o nome do Profeta do Islão (termo que significa submissão, subentendendo-se a Deus/Alá e não a qualquer Imã ou descendente do Profeta) tem em Português vários termos ou designações, sendo os mais antigos e, por isso mesmo de maior legitimidade, o de Mafoma ou Mafamede, como Camões usou n’ Os Lusíadas e não Maomé, que veio também por influência francesa, tendo ganho entre nós larga aceitação, mas que não justifica o desterro daqueloutros mais vernáculos e sem mácula de galicismo, hoje pecadilho de somenos, em face da enxurrada de anglicismos que invadiu a doce e formosa Língua lusitana, última flor do Lácio, no dizer feliz e lapidar de um também virtuoso sonetista, o poeta brasileiro Olavo Bilac.

Com a ajuda do insigne Mestre acima evocado, aqui fica, por conseguinte, este meu modesto contributo para o esclarecimento de um assunto que continua desnecessariamente a trazer tantos Portugueses mergulhados em equívocos e em confusões.


AV_Lisboa, 31 de Julho de 2009

2 comentários:

Luiz Saudade disse...

Obrigado Rosa, por nos trazer este valioso contributo a proposito da palavra "Alcorão". Pena é que a nossa língua, que tanto contribuiu ao longo dos séculos para criar outras e influenciar tantas, aos poucos se deixe "minimizar" e não mantenha a sua qualidade e pureza. A grande tendencia dos portugueses para se adaptarem às outras culturas, será também uma das razões, a par de outras que muitos conhecem. Está na nossa mão contribuir para manter vivas as nossas raízes culturais sem qualquer tipo de submissão.

Rosa Machado disse...

Infelizmente até neste campo, tão importante, parece que se aplica o famigerado "lá fora é que é bom".
Bem andou JPM sobre este assunto, quanto lhe pedi para me ensinar árabe: "Quando souberes falar e escrever correctamente português, ensino-te árabe". Ou seja, nos idos de Março.... Que saudades das correcções (e ralhetes) dele!